Recentemente, numa postagem do Facebook onde fiz menção ao efeito “messiânico” do presidencialismo, que leva à construção da imagem de “salvadores da pátria”, um amigo formulou as questões abaixo. Como as achei pertinentes e sou parlamentarista convicto, resolvi esperar um pouco para poder responder com mais tempo. As respostas rápidas feitas no celular, por vezes são insatisfatórias para um tema tão importante. Os resultados da espera foram: atraso para responder e uma resposta muito longa para o nível Facebook.
Compartilho aqui então, para deixar o registro.

A primeira pergunta poderia ser adaptada para uma realidade concreta: “como aceitar uma lei se temos deputados com poucos votos tendo o mesmo peso de outros com milhões?” A pergunta aborda um problema discutido por cientistas políticos dedicados aos temas das eleições e da representação política. Ela é relevante, pois dá a oportunidade de defender adequações e mudanças no sistema eleitoral, necessárias para a transição para o parlamentarismo. O problema da não-proporcionalidade entre população e representantes poderia ser atacado com a adoção do voto distrital, ou distrital-misto, por exemplo.
Importante notar que, se essa falha de representação invalidasse a representatividade do poder legislativo, nenhuma lei poderia ser aprovada no modelo atual. Hoje, temos “distritos” coincidentes com os territórios estaduais, com os deputados eleitos no modelo proporcional puro. Dessa forma, há deputados que representam menos votos por dois motivos: 1) pela não-proporcionalidade resultante da alocação do número de cadeiras na Câmara entre os estados e 2) a possibilidade aberta pelo voto na legenda garantir cadeira para um candidato menos votado em decorrência da alta votação de outro candidato da mesma chapa (Tiririca ou, mais recentemente, Eduardo Bolsonaro, para exemplificar). Com o voto distrital, seria resolvido esse segundo problema. Também poderíamos buscar o equilíbrio entre o votos e cadeiras, mas, não sei até que ponto seria justo, em termos de federalismo, pensarmos nesse modelo de proporcionalidade. Esse artigo aqui é interessante para pensar sobre o assunto (https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092004000300008)
O problema da não-proporcionalidade também existe no presidencialismo e a alocação desproporcional das cadeiras da Câmara é histórica, estando, segundo o Jairo Nicolau, presente em todas as legislaturas eleitas no Império e na República. (https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300006#v5)
Com base nesses e em outros estudos, eu diria que, mantido o atual sistema eleitoral brasileiro, talvez não houvesse problema de representatividade para um chefe do Executivo escolhido conforme o modelo parlamentarista. Mas poderia existir dificuldade para a formação de maiorias, por conta do grande número de siglas representadas no Congresso. O mecanismos de cláusulas de barreira e o fim das coligações proporcionais já estão contribuindo diminuir o número de partidos no Congresso, o que já significa um avanço.
Uma das principais características constitucionais do parlamentarismo é que o poder executivo, ou gabinete, retira seu mandato do parlamento, o Congresso no caso brasileiro, perante o qual é politicamente responsável. O que torna uma democracia parlamentar democrática é que, uma vez realizada uma eleição legislativa, a nova legislatura tem o poder de demitir o executivo em exercício e substituí-lo por um novo. Num parlamentarismo (ou semi-presidencialismo) em que o presidente (chefe de Estado) seja eleito pelo voto direto, o primeiro-ministro (chefe de Governo) deve ser indicado pelo presidente, desde que conte com o apoio majoritário no parlamento. O plano de governo e o gabinete devem ser aprovados pela maioria do Congresso.
Assim, o parlamento, onde o povo é representado, vira um espaço para a avaliação contínua dos atos do executivo – com muito mais força do que temos atualmente. É assim que os cidadãos, indiretamente, escolhem e controlam seu governo. O executivo, em geral formado por parlamentares, normalmente também tem autoridade para recomendar a dissolução do parlamento. Então, quem está no executivo tem familiaridade com as práticas legislativas; e, exatamente como é hoje, os parlamentares aspiram alcançar o executivo. O resultado é um executivo forte (por contar com maiorias parlamentares), e um legislativo forte (por poder fiscalizar os compromissos do Executivo). O que temos no nosso atual presidencialismo é o contrário: um executivo fraco (pois pára se não conquistar uma maioria parlamentar) e um legislativo fraco (pois se submete ao executivo em troca de espaços no governo e outras benesses).
A segunda questão levanta: “como confiar na decisão de uma “maioria parlamentar” com o nível de instrução, maturidade e moralidade de grande parte dos políticos?”. Primeiramente: o mesmo universo de eleitores da “maioria parlamentar” é o que elege o Presidente. Aliás, as eleições são coincidentes. Em segundo lugar: o Congresso é, de certa forma, um espelho da sociedade. Portanto, esse problema poderia ser lançado também sobre o sistema presidencialista: como confiar na decisão de uma maioria de eleitores com o nível de instrução, maturidade e moralidade de grande parte dos brasileiros? Nesse aspeco, considero que o parlamentarismo leva vantagem, pois diminui justamente o risco da eleição, para um mandato fixo de quatro anos, de figuras populistas e autoritária. Figuras que historicamente surgem em momentos de crise e se aproveitam do baixo nível de instrução, maturidade política e/ou moralidade do eleitorado.